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Panorama da Logística Humanitária no Brasil e no Mundo: Percepções, Ocorrências e Práticas

Análise Crítica com Base em Pesquisa Aplicada a Profissionais e Voluntários da Logística Humanitária, Emergência e Gestão de Desastres

1. RESUMO

O presente artigo apresenta uma análise abrangente sobre a difusão, percepção e práticas da logística humanitária no Brasil e no mundo. A partir de uma pesquisa aplicada entre 2019 e 2021, com 341 participantes de 55 países, buscou-se compreender como o conhecimento técnico e a experiência prática em situações de desastres, guerras e crises humanitárias estão distribuídos entre profissionais da logística, da resposta a emergências e do meio acadêmico. Os dados revelam disparidades significativas entre a percepção de domínio do tema e a real atuação prática, bem como desafios relacionados à capacitação, institucionalização de setores especializados e à compreensão da importância da logística humanitária em diferentes estágios do gerenciamento de crises. O artigo também discute a geografia das ocorrências, os perfis profissionais envolvidos, os tipos de eventos enfrentados e as lacunas estruturais que impactam diretamente a eficiência das operações. As percepções e respostas dos participantes refletem as realidades locais e regionais em que atuam — suas culturas, políticas, experiências anteriores com desastres e estruturas institucionais —, revelando como esses contextos moldam a forma como a logística humanitária é compreendida, aplicada e difundida nos diferentes territórios. Por fim, o estudo propõe reflexões sobre a necessidade de maior regulamentação, formação e integração entre os diversos atores envolvidos, destacando a importância de uma abordagem mais estratégica, contextualizada e ética na gestão da ajuda humanitária.

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2. INTRODUÇÃO

A logística humanitária tem se consolidado como uma área estratégica no enfrentamento de desastres socioambientais, conflitos armados, emergências sanitárias e eventos extremos que exigem respostas rápidas, integradas e eficazes. Muito além da movimentação de suprimentos, essa atividade demanda planejamento minucioso, gestão eficiente de recursos humanos e materiais, leitura geográfica e territorial, comunicação em contextos críticos, além do domínio de conhecimentos socioculturais e religiosos — fatores essenciais para garantir intervenções humanizadas e respeitosas às populações afetadas.

Apesar do crescimento da visibilidade da logística humanitária nos últimos anos, persistem lacunas expressivas na formação profissional, na capacitação técnica e na institucionalização de protocolos operacionais robustos. Em muitas regiões, sobretudo em áreas de instabilidade política ou com infraestrutura precária, as ações ainda se pautam no improviso, carecendo de planejamento estruturado e articulação interinstitucional. Soma-se a isso o fato de que grande parte dos recursos empregados em operações humanitárias — principalmente em cenários de grande escala — provém de doações voluntárias, colaborações internacionais ou iniciativas locais de natureza emergencial, o que acarreta desafios adicionais para a continuidade e efetividade das ações.

Este artigo se fundamenta em uma pesquisa aplicada de abrangência internacional, iniciada com foco no Brasil, mas que, diante da ampla adesão voluntária de participantes estrangeiros, expandiu-se para 55 países distribuídos pelos continentes da América, Europa, África e Ásia. O estudo captou percepções e experiências de agentes de proteção e defesa civil, bombeiros, equipes de resposta humanitária reconhecidas mundialmente, engenheiros, profissionais de saúde, assistentes sociais, voluntários e acadêmicos com atuação direta ou indireta em operações humanitárias. Entre eles, destacam-se militares e civis vinculados a instituições governamentais e não governamentais, nacionais e internacionais, de grande relevância no cenário global de desastres e conflitos.

A coleta de dados foi realizada entre setembro de 2019 e janeiro de 2021, período marcado por desastres socioambientais e conflitos que testaram intensamente a capacidade de resposta logística em escala global. Nesse intervalo, destacam-se o Furacão Dorian nas Bahamas (2019), a invasão turca no nordeste da Síria (2019) e a ofensiva em Idlib, também na Síria (2019–2020). Somam-se a esses episódios os incêndios florestais na Califórnia (2020), a eclosão da pandemia de COVID-19 (2020), a Guerra de Nagorno-Karabakh entre Armênia e Azerbaijão (2020), a Guerra do Tigré na Etiópia (2020), além das inundações catastróficas que atingiram a Europa e a China em 2021. Esses eventos, combinados, reforçaram os desafios logísticos em contextos de crises complexas e simultâneas. As contribuições obtidas permitiram reunir um mosaico de perspectivas técnicas, institucionais e vivenciais, proporcionando um panorama diversificado sobre os desafios contemporâneos da logística humanitária.

A análise combina abordagens quantitativa e qualitativa, explorando gráficos extraídos da base de dados, articulados com marcos legais, diretrizes internacionais (como o Marco de Sendai e os padrões Sphere), e fontes jornalísticas sobre os desastres e conflitos. Ao cruzar a percepção dos participantes com dados reais de ocorrências, formações, estruturas e ausências institucionais, o presente estudo visa fortalecer a compreensão técnica da área, propor caminhos para sua profissionalização e contribuir com recomendações práticas para sua consolidação como política pública permanente.

O panorama atual, inclusive, evidencia um colapso logístico em diversas regiões do globo, provocado tanto por ações humanas quanto por eventos ambientais. Os recentes conflitos no Oriente Médio — como os enfrentamentos entre Israel e Gaza, as tensões entre Rússia e Ucrânia — demonstram as dificuldades em garantir acesso, segurança e eficácia na entrega de ajuda humanitária. No contexto brasileiro, eventos climáticos extremos, como as enchentes no Rio Grande do Sul e no Norte e Nordeste do país, escancararam a fragilidade da estrutura logística nacional, especialmente no tocante à distribuição de donativos, abrigamento emergencial e articulação entre entes públicos e privados. Esses episódios reforçam a urgência de estruturação sólida e capacitação permanente para que a logística humanitária seja capaz de cumprir seu papel com celeridade, justiça e eficiência.

3. OBJETIVOS

O principal objetivo deste artigo é apresentar uma análise crítica e abrangente sobre o cenário da logística humanitária, levando em consideração diferentes realidades regionais, institucionais e profissionais. Com base em um conjunto expressivo de dados coletados junto a especialistas atuantes em contextos emergenciais e humanitários, o estudo busca mapear percepções, identificar lacunas na formação técnica, compreender padrões de empregabilidade e propor estratégias para o fortalecimento e a profissionalização do setor. A partir dessa diversidade geográfica e funcional, pretende-se, especificamente:

  • Investigar o nível de conhecimento técnico e prático dos participantes sobre logística humanitária;

  • Analisar a inserção profissional em processos de resposta a desastres e conflitos, incluindo funções exercidas e tipos de ocorrências enfrentadas;

  • Verificar a existência de setores institucionais específicos voltados à logística humanitária e o perfil dos profissionais alocados;

  • Identificar as principais fontes de formação e informação utilizadas pelos participantes (livros, cursos, experiência empírica);

  • Comparar a percepção declarada com as práticas e vivências relatadas, evidenciando lacunas, mitos e potencialidades;

  • Mapear a distribuição geográfica da participação e associá-la às ocorrências reais e à estrutura de resposta em diferentes localidades;

  • Propor reflexões e recomendações para o fortalecimento da logística humanitária como campo estratégico, técnico e ético de atuação.

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4.      METODOLOGIA

A pesquisa teve início com foco nacional, direcionada exclusivamente à coleta de percepções de profissionais brasileiros. Contudo, diante da crescente adesão de participantes de outros países, a abordagem metodológica foi ampliada, configurando-se como um levantamento de abrangência internacional. A coleta de dados foi realizada por meio de um formulário eletrônico disponibilizado entre setembro de 2019 e janeiro de 2021, amplamente divulgado em redes profissionais, instituições acadêmicas, organizações de resposta a emergências, plataformas temáticas e contatos diretos do autor.

O instrumento de pesquisa continha questões fechadas e abertas, organizadas em blocos temáticos: perfil demográfico e profissional; conhecimento sobre logística humanitária; experiência prática em ocorrências (tipos e dimensões); formação acadêmica e técnica; instituições e setores envolvidos; e percepções sobre a profissionalização e a institucionalização da área. Ao todo, foram obtidas 341 respostas válidas, sendo 195 de participantes brasileiros e 146 de outros países.

A análise dos dados foi realizada por meio de técnicas estatísticas descritivas e análise temática. A triangulação metodológica adotada envolveu: (a) análise quantitativa com uso de gráficos e tabelas; (b) cruzamento com dados de eventos noticiados e relatórios de organizações humanitárias internacionais; (c) análise qualitativa das percepções, relatos e referências à formação e empregabilidade; e (d) revisão de literatura técnica e marcos legais nacionais e internacionais aplicáveis à logística humanitária.

A experiência prática do autor em desastres como Mariana (2015), Brumadinho (2019), Teresópolis e Vitória — associada à sua atuação em capacitações, palestras e à publicação do livro “Logística Humanitária – Metodologia de Centros de Gestão de Donativos” — foi fundamental para a disseminação do tema e o alcance da pesquisa em regiões estratégicas, especialmente no Brasil.

5. ANÁLISES E DISCUSSÕES

A análise geral mostra um campo em consolidação: há engajamento expressivo e consciência sobre a importância da logística humanitária, mas ainda predominam ações empíricas e de caráter reativo.

O desafio contemporâneo é transformar o improviso em estrutura e o voluntarismo em profissionalização, fortalecendo politicas permanentes e integradas de resposta humanitária.

 

a. O que os dados revelam sobre conhecimento, empregabilidade e experiências?

Embora a maioria dos participantes declare conhecer o conceito de logística humanitária, uma análise mais profunda revela um cenário desigual. Muitos demonstram familiaridade superficial, especialmente no que diz respeito a normativas técnicas, protocolos internacionais e marcos legais. A empregabilidade ainda se restringe, em grande parte, a momentos críticos de emergência, com destaque para funções de estocagem e distribuição de donativos – setores nos quais o improviso ainda substitui a sistematização.

 

b. Relação entre tipo de ocorrência e forma de atuação

Houve um padrão evidente: participantes envolvidos em contextos de guerra, campos de refugiados ou crises migratórias relataram maior participação em transporte logístico, triagem de suprimentos e estruturação de comboios. Já os que atuaram em desastres socioambientais e sociotecnológicos (como inundações ou rompimento de barragens) trabalharam sobretudo em armazenamento e distribuição. A natureza da ocorrência define, em grande parte, o tipo de função exercida.

 

c. Fontes de conhecimento e formação

As principais fontes de conhecimento identificadas foram: vivência prática, cursos livres, treinamentos em instituições locais e leitura autodidata. Curiosamente, a formação acadêmica formal foi pouco mencionada como via de aprendizado primário. Isso evidencia a carência da inclusão do tema em currículos universitários e reforça a urgência de institucionalizar o saber técnico na formação de profissionais.

d. Vivência empírica versus conhecimento técnico

A maioria dos entrevistados construiu sua compreensão a partir de experiências diretas, sem necessariamente possuir formação específica na área. Isso cria uma cultura de aprendizado empírico, onde o saber é repassado de forma oral e prática. Regiões com maior número de ocorrências, como o Sudeste brasileiro e países em guerra, concentraram maior número de profissionais com experiência vivencial, mas sem respaldo técnico formal.

e. Estrutura institucional e capacitação

Apenas uma parte dos participantes atua em instituições com setores estruturados para logística humanitária. E mesmo nesses casos, a qualificação técnica dos profissionais varia amplamente. A ausência de equipes capacitadas compromete diretamente a eficiência das respostas, gerando riscos logísticos, desperdícios e violações de direitos humanos.

f. Ocorrências geram conhecimento?

Sim, mas com ressalvas. Regiões mais afetadas por desastres, como Minas Gerais (Brasil) ou a Síria, demonstram maior familiaridade prática com operações humanitárias. No entanto, a recorrência de emergências não se traduz, necessariamente, em maior qualificação técnica — muitas vezes, apenas perpetua a prática reativa e o improviso.

g. Brasil e mundo: diferentes estágios de maturidade

No Brasil, o conhecimento está mais concentrado nas regiões Sudeste e Sul, onde houve maior mobilização civil e acadêmica. Regiões como o Norte e Centro-Oeste ainda carecem de presença significativa no debate. Internacionalmente, países em situação de conflito demonstraram maior envolvimento institucional, seja por meio de organismos multilaterais, redes humanitárias de alcance global ou organizações locais de resposta.

h. Profissões e etapas do processo logístico

Foram identificadas dezenas de profissões envolvidas no ciclo humanitário: bombeiros civis e militares, engenheiros, assistentes sociais, enfermeiros, resgatistas, voluntários, profissionais de proteção e defesa civil e logística empresarial. Cada um desempenha papel em etapas distintas: planejamento, mapeamento, recebimento, transporte, estocagem, distribuição e avaliação pós-crise.

i. Saber ou não saber: entre discurso e prática

O número de pessoas que afirmam conhecer o tema é alto. No entanto, ao detalhar suas experiências, percebe-se que muitos desconhecem conceitos básicos, legislações, ou nunca atuaram em situações reais. Isso é mais evidente em regiões com menor incidência de desastres ou sem cobertura midiática.

j. A mídia como termômetro e espelho

Casos de má gestão logística, como desvios de donativos, violência em campos e ineficiência no transporte, contrastam com boas práticas documentadas pela mídia: comboios eficientes, abrigos bem administrados e projetos de reinserção social. A cobertura midiática revela a dualidade da resposta humanitária e sua fragilidade em contextos instáveis.

k. Atuação militar: presença marcante e formação doutrinária

Os militares foram um dos grupos mais preparados, com presença significativa em grandes desastres e missões internacionais. Seu preparo vem de formações doutrinárias, simulações e protocolos operacionais. Muitos atuaram em campos complexos, como terremotos, guerras e operações combinadas com forças civis.

l. Internacionalização e multilinguismo

A pesquisa começou em português, mas expandiu-se para o inglês e outros idiomas diante da procura internacional. Participantes de diversos países colaboraram, refletindo o alcance global do tema e sua relevância transversal. A multiplicidade de idiomas também revelou variações conceituais e operacionais entre contextos culturais distintos.

m. Características das Ações de Logística Humanitária

A análise das respostas revela que a logística humanitária ainda é percebida de forma fragmentada. Apesar da complexidade que envolve desde a prevenção até a recuperação pós-desastre, muitos participantes ainda associam sua atuação apenas ao transporte e à distribuição de donativos. Isso reflete a ausência de padronização institucional e a falta de protocolos claros sobre o papel da logística em crises.

Em relação à natureza do setor, a maioria dos entrevistados (mais de 75%) acredita que a logística humanitária deve estar vinculada ao Órgão de Proteção e Defesa Civil ou órgãos de resposta direta, com gestão descentralizada e foco técnico. Cerca de 78% apontaram que o profissional da área não precisa ser militar, e sim um especialista capacitado com formação multidisciplinar. Houve ainda a defesa da criação de estruturas específicas em instituições públicas e privadas, com normativas próprias e integração com políticas de proteção e defesa civil. Essa percepção aponta para a necessidade de fortalecimento institucional, valorizando a expertise civil, sem desconsiderar a relevância da articulação com estruturas militares em grandes desastres.

n. Tipos de Ocorrências e sua Influência

A experiência prática dos participantes foi um dos fatores mais significativos na forma como compreendem e respondem à logística humanitária. Profissionais que atuaram em guerras, campos de refugiados, pandemias, rompimento de barragens ou grandes inundações demonstraram maior familiaridade com a terminologia, os processos e as necessidades técnicas. Por outro lado, participantes de regiões com poucas ocorrências graves ou que não vivenciaram diretamente desastres tenderam a apresentar visões mais teóricas ou superficiais.

Cerca de relataram ter atuado em desastres de grande porte, com , envolvendo situações com . Essas vivências em cenários de alta complexidade — frequentemente associadas a — influenciaram significativamente suas percepções sobre a importância da , da e da . Por outro lado, cerca de teve contato apenas com , como , demonstrando — especialmente nos processos de .

5.1. ANÁLISES NACIONAL E REGIONAL

A análise nacional revela uma predominância expressiva de participantes da região Sudeste (70,3%), seguida pelas regiões Sul (12,8%), Nordeste (12,8%), Norte (2,1%) e Centro-Oeste (2,1%). Entre os respondentes brasileiros, São Paulo representa aproximadamente 28,2% do total, enquanto Minas Gerais e Rio de Janeiro correspondem, cada um, a cerca de 21,0%. Em conjunto, esses três estados concentram 137 profissionais e voluntários, ou 70,3% da participação nacional — resultado que reflete não apenas a maior densidade populacional e o histórico de ocorrências de grande impacto nessas áreas, mas também o nível mais elevado de estruturação institucional dos órgãos de proteção e defesa civil locais.

A alta incidência de respostas em cidades diretamente afetadas por desastres — como Mariana, Brumadinho, Petrópolis e Ouro Preto — aponta para uma correlação clara entre a experiência vivida com emergências e o interesse ou envolvimento com a logística humanitária. Esses municípios, marcados por tragédias socioambientais e sociais de grandes proporções, se tornaram polos de mobilização e aprendizado institucional, impulsionando discussões e investimentos em ações preventivas, capacitações e protocolos operacionais.

Entre os 114 municípios com respondentes, observam-se variações significativas nos níveis de conhecimento, empregabilidade e institucionalização da logística humanitária. Estados com presença mais robusta de estruturas de proteção e defesa civil, articulação com universidades e histórico de desastres recorrentes apresentaram maior incidência de profissionais com experiência prática e formação técnica. Isso evidencia que a maturidade institucional e o investimento público em políticas de proteção e resposta humanitária influenciam diretamente a difusão de competências e a consolidação do setor.

Além disso, o padrão de distribuição regional também reflete desigualdades estruturais em termos de acesso à formação, investimentos públicos, e políticas de gestão de riscos e desastres. Regiões como o Norte e o Centro-Oeste, embora igualmente vulneráveis a determinados eventos extremos, apresentaram menor participação, o que pode indicar carências tanto em visibilidade quanto em infraestrutura voltada à atuação humanitária.

5.2. ANÁLISES INTERNACIONAL

Dos 341 participantes da pesquisa, 146 eram estrangeiros, provenientes de 55 países distribuídos nos continentes América, Europa, África e Ásia. A América concentrou o maior número de participantes (43% dos estrangeiros), seguida pela Europa (15,75%), Ásia (14,62%) e África (10,95%). Essa diversidade geográfica proporcionou uma visão ampla da logística humanitária em contextos variados de desastres e conflitos armados.

Entre os países com maior número de participantes estrangeiros destacam-se: Síria (17,8%), Estados Unidos (5,5%), Canadá (4,8%), Espanha (3,4%), México (3,4%), Turquia (3,4%), Argentina (2,7%) e Bangladesh (2,1%). Em muitos desses países, o período de coleta da pesquisa (2019–2021) coincidiu com eventos significativos:

  • A guerra civil na Síria resultou em uma das maiores crises humanitárias contemporâneas, com milhões de deslocados internos e refugiados, agravada por secas severas que comprometeram a produção de alimentos e a segurança alimentar.

  • Incêndios florestais nos Estados Unidos (especialmente na Califórnia, Oregon e Washington) e no Canadá (Colúmbia Britânica) demandaram evacuações em massa, instalação de abrigos temporários e atuação de organizações humanitárias locais e internacionais.

  • Na Espanha, incêndios na região da Galícia acionaram recursos do Mecanismo de Proteção Civil da União Europeia e motivaram ações de resgate e combate ao fogo.

  • O terremoto na província de Elazig, na Turquia (2020), causou mortes, feridos e destruição de infraestrutura, mobilizando equipes de socorro e assistência emergencial.

  • A crise de refugiados venezuelanos intensificou-se em países da América Latina, como Colômbia, Equador, Chile e Brasil, exigindo respostas em saúde, alimentação, abrigo e integração social.

  • O ciclone Idai em Moçambique (2019) provocou danos significativos, demandando ampla operação logística internacional para socorro, reconstrução e atendimento emergencial.

  • A pandemia de COVID-19 afetou globalmente sistemas de saúde, cadeias de suprimentos e políticas de assistência, exigindo coordenação internacional sem precedentes.

  • Incêndios na Austrália, Estados Unidos, Portugal e Canadá, somados a eventos extremos de precipitação e estiagem, geraram grande demanda por abrigos, alimentos, transporte e serviços de saúde.

  • Conflitos armados na África, como os ataques na Etiópia (Tigray, 2020–2021), mobilizaram respostas internacionais de ajuda emergencial.

  • Outros desastres climáticos e eventos extremos incluíram ciclones na Índia e em Bangladesh (fora de Cox’s Bazar), inundações no Sudeste Asiático, incêndios na Califórnia (EUA) e no Pantanal brasileiro (2020), exigindo ações humanitárias coordenadas para proteger comunidades vulneráveis.

 

A análise revela ainda que países afetados por guerras e conflitos — como Síria, Irã, Jordânia, Senegal e Haiti — apresentaram participantes com maior experiência em campos de refugiados, distribuição de donativos, apoio à população civil e envolvimento em missões conduzidas por organismos multilaterais e redes humanitárias internacionais. Muitos desses profissionais possuíam formações específicas, como graduação ou cursos em logística humanitária, engenharia, saúde e assistência social, refletindo a especialização exigida para operar em contextos de alta complexidade.

Em contrapartida, países com menor histórico de desastres de grande escala ou menos envolvimento com a agenda humanitária internacional — como Bélgica, Albânia e Benin — mostraram menor familiaridade com o tema, mas ainda assim ofereceram respostas valiosas sobre percepção, formação e desejo de atuar na área.

6. RESULTADOS COM GRÁFICOS

Nesta seção, apresentam-se gráficos consolidados que ilustram a distribuição geográfica, os perfis profissionais, os tipos de ocorrência e o grau de formação dos participantes. As visualizações, elaboradas a partir da análise detalhada da planilha de dados e das informações descritivas coletadas, têm o objetivo de facilitar a interpretação dos resultados, permitindo comparações claras entre regiões, perfis profissionais e áreas de atuação. Esses elementos gráficos fortalecem a análise crítica, evidenciam padrões relevantes e destacam de forma precisa os principais achados do estudo.

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Mapa 1 – Distribuição dos participantes por país

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Participação Global

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A pesquisa alcançou abrangência mundial, reunindo profissionais, acadêmicos e voluntários de 55 países distribuídos em cinco continentes, o que evidencia o caráter internacional e multidisciplinar da investigação.

O continente americano concentrou aproximadamente 65% dos respondentes, com destaque para o Brasil (57%), seguido por Estados Unidos (2,4%), Canadá (2%), Colômbia (1,8%), México (1,5%), Argentina (1,2%) e Chile (0,6%). Essa predominância reflete tanto a origem brasileira da pesquisa quanto o crescente protagonismo latino-americano nas discussões sobre gestão de desastres e logística humanitária, especialmente no contexto das mudanças climáticas.

​​Gráfico 1 – Distribuição dos participantes por continente

As principais cidades de origem nos países latino-americanos — Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo, Brasília, Medellín e Santiago — se destacam pela concentração de universidades, organizações de resposta emergencial e experiência prática em desastres. No entanto, embora relevantes regionalmente, outros países apresentam contextos com maior investimento, desenvolvimento técnico, capacitação profissional e infraestrutura educacional impactando na logística humanitária, conferindo-lhes destaque estratégico global.

A Ásia representou cerca de 16% dos participantes, com ênfase para a Síria (7,6%), Índia (0,9%), Jordânia (0,9%), Bangladesh (0,9%), Japão (0,9%), Irã (0,6%), Indonésia (0,6%) e Filipinas (0,9%). Essa representatividade reflete o papel central do continente nas crises migratórias e humanitárias recentes, envolvendo deslocamentos populacionais e catástrofes socioambientais. As cidades citadas, como Damasco, Amã e Nova Délhi, têm importância geopolítica e abrigam organizações internacionais e campos de refugiados, onde a logística humanitária assume papel decisivo.

Na Europa, os respondentes corresponderam a aproximadamente 8,5% do total, com origem em países como Espanha (1,5%), Turquia (1,5%), Alemanha (0,9%), Portugal (0,9%), Itália (0,6%), França (0,6%) e Irlanda (0,6%). A representatividade europeia evidencia o engajamento de instituições públicas e privadas, centros de pesquisa e ONGs internacionais, consolidando a região como um polo de cooperação técnica e difusão de boas práticas. Cidades como Madri, Lisboa, Istambul e Berlim destacam-se por sediar organizações de resposta a desastres e redes de apoio humanitário transnacionais.

O continente africano respondeu por cerca de 5% dos participantes, com presença de profissionais de Senegal (0,9%), Etiópia (0,6%), Tanzânia (0,6%), Tunísia (0,6%) e Quênia (0,6%), entre outros. A expressiva participação africana reflete a relação direta entre vulnerabilidade estrutural e engajamento em ações humanitárias, especialmente em regiões afetadas por secas, conflitos e crises alimentares.

A Oceania, por sua vez, não apresentou participação registrada, embora a região possua países como Austrália e Nova Zelândia, reconhecidos internacionalmente pelos seus protocolos de resiliência climática e resposta a desastres socioambientais.

Em relação à faixa etária, observou-se predominância de profissionais entre 31 e 45 anos (46%), seguidos de participantes entre 18 e 30 anos (33%) e 46 a 60 anos (18%), o que demonstra a presença equilibrada entre juventude técnica e experiência de campo, uma combinação essencial para o fortalecimento das redes de resposta humanitária.​​​​​​​​​

PARTICIPAÇÃO POR PAÍS

 

O Gráfico 2 mostra que o Brasil responde por cerca de 57,2% da amostra, seguido pela Síria com aproximadamente 7,6%, Estados Unidos (2,3%), Canadá (2,0%), Espanha, México e Turquia (cada um com ~1,5%), Argentina (~1,2%), e Bangladesh e Índia (~0,9% cada).

A adesão expressiva de respondentes da Síria é particularmente relevante: esse país vive há anos crises humanitárias complexas — guerra civil, deslocamentos massivos e desastres socioambientais recorrentes — e tem suporte frequente de organizações internacionais que atuam em resposta emergencial e reconstrução. Esse cenário de instabilidade prolongada e sucessivas crises humanitárias contribui para a formação de profissionais e voluntários com alta experiência em contextos de emergência, o que justifica a relevância da participação síria na pesquisa e reforça a presença do tema da logística humanitária em suas práticas cotidianas.

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Gráfico 2 – Número de participantes por país (10 maiores)

Quanto ao Brasil, embora seja natural que domine os números por se tratar do local de origem da pesquisa, essa participação reflete mais do que proximidade: trata-se de um país de dimensões continentais, com diversidade geográfica que inclui biomas distintos, zonas costeiras extensas, regiões montanhosas, além de episódios frequentes de secas, incêndios florestais, inundações, deslizamentos e rompimentos de barragens. Eventos recentes como as fortes enchentes no Rio Grande do Sul (2023-2024) demonstram que a magnitude desses desastres está crescendo, tanto em frequência quanto em impacto.

Países como os Estados Unidos, Canadá e Espanha aparecem com menor proporção, mas sua presença sugere envolvimento acadêmico, técnico ou institucional em redes internacionais, cooperação e pesquisa sobre logística humanitária, além de sua capacidade de mobilização em casos de desastre. Por outro lado, Bangladesh e Índia — embora com participação menor — representam regiões com fortes vulnerabilidades climáticas e demográficas, sujeitas a enchentes sazonais, ciclones e insegurança hídrica, o que motiva o interesse local no tema.

Assim, a distribuição por país, com seus diferentes percentuais, fornece uma visão plural e rica das experiências compartilhadas, sem indicar, pelo número de respondentes, quem “faz mais” ou está “mais avançado” no tema. Ela simplesmente traduz onde conseguimos obter respostas, e mostra que, nos locais com participação, há uma percepção real de que logística humanitária importa — seja pela vivência direta, pelos eventos recentes ou pelo engajamento institucional.

DISTRIBUIÇÃO NACIONAL

São Paulo (28,2%), Minas Gerais (21,0%) e Rio de Janeiro (21,0%) concentram juntos 70,3% dos respondentes nacionais, reunindo 137 profissionais e voluntários distribuídos em regiões historicamente afetadas por desastres socioambientais e sociotecnológicos. Esses estados foram epicentros de episódios marcantes, como os rompimentos de barragens em Mariana e Brumadinho, as enchentes e deslizamentos recorrentes na Região Serrana do Rio de Janeiro, e os eventos extremos de precipitação e estiagem que impactam o interior e o litoral paulista.

 

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​​​​​​Mapa 2 – Distribuição dos participantes por estado brasileiro

​​Em Minas Gerais, observa-se a contribuição significativa de profissionais ligados à mineração, proteção e defesa civil e universidades, refletindo o impacto duradouro dos desastres de Mariana (2015) e Brumadinho (2019). Esses eventos não apenas mobilizaram respostas emergenciais, mas também impulsionaram debates nacionais sobre governança de risco, responsabilidade corporativa e políticas públicas de segurança de barragens, destacando o papel estratégico do estado na economia mineradora e na regulação de setores críticos para o desenvolvimento nacional.

No Rio de Janeiro, a participação dos profissionais está diretamente ligada à vivência com enchentes, deslizamentos e riscos tecnológicos em áreas urbanas densamente povoadas. Além dos desafios humanitários, o estado enfrenta questões complexas de segurança pública que impactam diversas ações emergenciais. Sua posição de relevância econômica e política nacional, abrigando portos e centros financeiros estratégicos.

Gráfico 3 – Distribuição dos participantes por estado brasileiro.

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São Paulo, pela dimensão territorial, concentração industrial e presença de rodovias estratégicas, abriga grande número de profissionais da logística empresarial que podem contribuir significativamente para operações humanitárias. A relevância econômica do estado, como maior polo industrial e financeiro do país, aliada à sua influência política nacional, reflete diretamente na gestão de crises e nas operações humanitárias, impactando em múltiplas situações emergenciais em todo o território nacional.

Outros estados também contribuíram de forma relevante, ainda que em menor proporção, oferecendo uma visão ampla da diversidade geográfica e operacional do país. O Rio Grande do Sul (6,2%) e Santa Catarina (5,1%) destacam-se pela experiência com eventos climáticos severos, como ciclones extratropicais, enchentes e enxurradas recentes. No Nordeste, estados como Bahia (4,6%) e Pernambuco (4,6%) reforçam a importância das regiões afetadas por secas históricas, enchentes sazonais e colapsos urbanos, além da atuação de universidades e grupos de voluntariado humanitário.

A Amazônia (0,5%), embora numericamente menos expressiva, representa uma área de grande interesse estratégico e humanitário, marcada por desafios logísticos, socioambientais e de acesso a comunidades isoladas, especialmente em períodos de cheia e estiagem.

Esses resultados refletem a abrangência e diversidade territorial do Brasil, um país de dimensões continentais onde ocorrem praticamente todos os tipos de desastres socioambientais e sociotecnológicos — o que o torna um laboratório real para o estudo e aprimoramento da logística humanitária. Assim, a representatividade obtida não expressa apenas quantidade de respostas, mas a pluralidade de experiências regionais que traduzem a complexidade do cenário nacional.

Tipos de Ocorrência e Envolvimento

Em complemento, a pesquisa revelou que aproximadamente 72% dos participantes já estiveram diretamente envolvidos em algum processo de logística humanitária, seja em situações reais de desastre, campanhas de arrecadação ou apoio operacional em campo. Por outro lado, 28% nunca participaram de ações dessa natureza, indicando que, embora estejam ligados a atividades acadêmicas, administrativas ou operacionais relacionadas ao tema, ainda não tiveram vivência prática direta.

Quando questionados sobre o entendimento conceitual do termo “logística humanitária”, a maioria (cerca de 82%) afirmou compreender seu significado, enquanto 18% declararam não possuir clareza sobre o tema. Esse dado evidencia uma lacuna relevante entre conhecimento teórico e prática operacional: muitos afirmam compreender o conceito, mas não dispõem de capacitação técnica ou experiência direta que lhes permita aplicá-lo adequadamente em contextos reais.

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Gráfico 4 – Tipos de ocorrências vivenciadas pelos participantes.

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Gráfico 5: Tipos de ocorrência em que os participantes tiveram experiência em logística humanitária

A análise dos segmentos de atuação e da dimensão das ocorrências mostra ampla diversidade nas frentes de contato com a logística humanitária. Observou-se que a maior parte das experiências se concentrou em desastres envolvendo até 50 afetados desalojados ou desabrigados sem mortes, enquanto situações com mais de 1.001 afetados, algumas com óbitos, também foram relatadas de forma expressiva. Entre os tipos de ocorrência relatados, destacam-se os desastres hidrológicos: inundações atingiram 33% dos respondentes, seguidas por incêndios (9%), conflitos armados (8%), rompimentos de barragens (7%), pandemias (6%) e apoio a campos de refugiados (5%). Esses dados indicam que desastres ambientais e crises sociais continuam sendo os principais gatilhos para a ação logística, evidenciando um perfil prático e adaptável dos participantes frente a diferentes escalas e severidades de emergências.

As respostas também destacam que a distribuição de donativos é a atividade mais frequente, mencionada em grande parte dos relatos, reforçando a centralidade desse processo nas ações emergenciais no Brasil e em outros países. Ainda que menos frequentes, foram relatadas participações em operações de reconstrução, ações em regiões afetadas por epidemias ou pandemias, mobilidade e uso de medicamentos, e até mesmo atividades de logística reversa de doações não prestáveis, demonstrando que a logística humanitária se estende muito além do socorro imediato. Essas evidências reforçam que, embora exista uma rede de profissionais engajados e dispostos a atuar, o setor ainda carece de capacitação técnica sistemática, integração interinstitucional e estrutura normativa consolidada. O predomínio de ações pontuais e de caráter emergencial, aliado à diversidade na dimensão das ocorrências e à falta de formação padronizada, dificulta o desenvolvimento de uma logística humanitária sustentável, profissional e estrategicamente articulada com políticas públicas e organismos internacionais.

Qualificação dos Profissionais Atuantes

Entre os respondentes, observa-se uma ampla diversidade de formações, trajetórias e experiências profissionais. Parte significativa apresenta algum nível de qualificação voltada à logística humanitária — seja por cursos livres, graduações, pós-graduações ou especializações — enquanto outro grupo expressivo construiu seu conhecimento de forma empírica, a partir da vivência em operações de emergência, voluntariado ou atuações diretas em desastres. Essa pluralidade formativa revela que o campo humanitário reúne tanto profissionais com base técnica consolidada quanto aqueles cuja expertise foi desenvolvida pela prática, resultando em diferentes níveis de domínio conceitual e operacional.

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Gráfico 6 – Composição profissional dos participantes nos setores de logística humanitária

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Gráfico 7 – Setores institucionais de atuação dos participantes em logística humanitária

Quanto à experiência institucional, os profissionais atuam em diferentes setores: cerca de 20% em forças militares e policiais, 15% em bombeiros civis e militares, 25% em órgãos de proteção e defesa civil municipal, estadual e nacional, 10% em instituições privadas e organizações não governamentais, e 30% em entidades humanitárias e organismos internacionais de reconhecida relevância. Essa diversidade institucional reflete diferentes níveis de treinamento, protocolos internos e acesso a recursos, influenciando diretamente a capacidade de atuação em cenários de emergência.

Em relação à experiência prática, aproximadamente 35% dos respondentes já trabalharam em Centros de Logística Humanitária, enquanto 25% atuaram em operações de campo coordenadas por instituições nacionais e internacionais, incluindo desastres socioambientais e crises humanitárias em diversos países, como Haiti, Síria, Nigéria, Chile, Argentina, Paquistão, Índia e EUA. Por outro lado, cerca de 40% dos profissionais atuam em setores de logística sem ter recebido treinamento formal específico, evidenciando lacunas que podem comprometer a eficiência das operações.

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Gráfico 8 – Experiência prática dos participantes em logística humanitária

Legenda explicativa: Os dados foram compilados em categorias considerando os seguintes segmentos: Distribuição e estocagem de donativos, que inclui distribuição de donativos, transporte, estocagem, logística reversa e distribuição em períodos de seca; Apoio operacional em campo, englobando apoio em incêndios, suporte às equipes de desastre, mobilidade e uso de medicamentos; Abrigos temporários e campos de refugiados; Gestão e planejamento de recursos humanos e rotas, que abrange gestão de recursos humanos, organização de rotas de evacuação, estruturação de recursos, planejamento interno, treinamento da população e captação de recursos; Campanhas e ações sem contato direto, como campanhas e estudos de demanda sem interação direta; Evacuação e remoção de afetados ou vítimas, incluindo pessoas, animais e abastecimento de caminhões-pipa; Profissionais especializados e saúde, contemplando médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e resgatistas; e, por fim, Outros ou Nenhuma das opções acima, que compreende outros casos, nenhuma das opções, todas as opções acima ou todas combinadas.

Essa heterogeneidade de formação, aliada à ausência de padronização e à inexistência de marcos regulatórios claros, contribui para um cenário de improvisação institucional e potencial vulnerabilidade nas operações humanitárias. A análise reforça a necessidade de programas estruturados de capacitação, integração entre setores e padronização de procedimentos para reduzir riscos e aumentar a efetividade das respostas humanitárias.

Grau de Conhecimento

Entre os respondentes, aproximadamente 46% declararam possuir formação específica em Logística Humanitária, obtida por meio de cursos, graduações, pós-graduações ou especializações internacionais na área. Os demais 54% relataram atuar em contextos humanitários sem formação técnica formal, adquirindo conhecimento principalmente pela experiência prática, participação em palestras ou por meios informais. Embora a maioria demonstre familiaridade com o conceito de logística humanitária, a análise detalhada revela que grande parte possui apenas noções básicas, o que evidencia lacunas de conhecimento e reforça a necessidade de programas de capacitação estruturados e contínuos.

Gráfico 9 – Nível de conhecimento dos participantes sobre logística humanitária

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Gráfico 10 – Conhecimentos e qualificações desejáveis para atuação no setor de Proteção e Defesa Civil Estadual segundo os participantes

Ao analisar a percepção dos participantes sobre a qualificação necessária para atuar em cada setor que envolve logística humanitária, dois segmentos estratégicos se destacam: Proteção e Defesa Civil Estadual e Mobilidade e Suporte Operacional. No setor de Proteção e Defesa Civil Estadual, os respondentes indicaram que a formação ideal varia conforme a complexidade das atividades de planejamento e coordenação exigidas em situações de desastre. Segundo a percepção dos participantes, aproximadamente 18% consideram necessária a formação em mestrado em logística humanitária, 22% pós-graduação, 20% graduação acadêmica, 15% cursos específicos e 25% acreditam que seria possível atuar sem conhecimento técnico formal. Estes dados evidenciam que, na visão dos profissionais, mesmo em setores estratégicos, há consenso sobre a importância de qualificações avançadas, embora parte das atividades possa ser desempenhada com experiência prática.

No setor de Mobilidade e Suporte Operacional, voltado à logística de transporte, armazenamento e suporte em operações humanitárias, os respondentes também apontaram diversidade de qualificações necessárias: 15% mestrado, 20% pós-graduação, 25% graduação acadêmica, 20% curso específico e 20% sem formação técnica formal. Essa percepção destaca a relevância de alinhar a qualificação às demandas de cada função, reforçando a necessidade de capacitação contínua, padronização de protocolos e incentivo à educação formal, garantindo respostas mais seguras e eficientes em situações de emergência.

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Gráfico 11 – Conhecimentos e qualificações desejáveis para atuação no setor de Mobilidade e Suporte Operacional segundo os participantes

Além disso, a análise por setor evidencia a importância de alinhar a qualificação dos profissionais às demandas específicas: em abrigos temporários, é recomendável pós-graduação ou mestrado; em gerenciamento de doações e centros de coleta, graduação ou pós-graduação; em campos de refugiados, mestrado ou pós-graduação; e no Órgão de Proteção e Defesa Civil Municipal, pós-graduação ou mestrado, sempre complementados por cursos práticos.Esses dados refletem a realidade do setor: existe um grupo expressivo de profissionais com formação acadêmica sólida, mas uma parcela considerável ainda carece de preparação formal. Essa disparidade evidencia a necessidade de políticas de capacitação contínua, formalização da profissão e disseminação de metodologias padronizadas, garantindo que a atuação em logística humanitária seja eficiente, segura e alinhada às exigências de cada contexto operacional.Ao confrontar o desejo de capacitação dos profissionais com as exigências institucionais e a realidade prática, nota-se um desencontro relevante. Embora muitos manifestem interesse em cursos, workshops, pós-graduação ou mestrado em logística humanitária, nem sempre essas oportunidades estão disponíveis ou são exigidas pelas instituições. Em diversos setores estratégicos, profissionais atuam com experiência prática, mas sem formação técnica formal, revelando lacunas que impactam a padronização de processos, a segurança das operações e a eficácia da resposta humanitária. Tal disparidade evidencia a necessidade de políticas institucionais que promovam capacitação estruturada e contínua, alinhando expectativas individuais e demandas organizacionais.Essa análise evidencia um certo desencontro entre a formação real dos profissionais e a qualificação que consideram necessária para o desempenho ideal das funções em logística humanitária, reforçando a importância de alinhar políticas institucionais, programas de capacitação e expectativas profissionais.

7. RESULTADOS

7.1. PERFIL PROFISSIONAL, CONHECIMENTO E ESTRUTURA HUMANITÁRIA

Panorama Geral

A pesquisa envolveu participantes de diversas regiões do Brasil e de 54 países, incluindo Síria, Irã, Jordânia, Índia, Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Espanha e Argentina, entre outros. Questionários aplicados em português, espanhol, inglês e outros permitiram captar perspectivas plurais sobre a logística humanitária em diferentes contextos nacionais e internacionais.

 

Nível de Conhecimento e Formação

Dos participantes, cerca de 66% afirmaram conhecer o conceito de logística humanitária. Entretanto, ao aprofundar as respostas, apenas 37% demonstraram conhecimento consistente, incluindo domínio de conceitos, marcos legais e experiência prática. A vivência direta em desastres e emergências foi apontada como a principal forma de aprendizagem, superando a formação acadêmica formal. Entre as fontes mais relevantes citadas, destacam-se livros especializados, cursos livres e experiências em campo, incluindo a obra Logística Humanitária – Metodologia de Centros de Gestão de Donativos (Douglas Sant’Anna da Cunha).

 

Perfil Profissional e Institucional

A atuação em logística humanitária está majoritariamente vinculada a instituições públicas de proteção e defesa civil, forças de apoio em situações emergenciais e organizações humanitárias de abrangência nacional e internacional. A maioria dos respondentes acredita que o profissional ideal deve ser multidisciplinar, com formação em logística e/ou gestão de emergências, e não necessariamente de origem militar. Para 75%, o fundamental é que esse profissional seja devidamente capacitado tecnicamente.

 

Empregabilidade e Interesses

A pesquisa revelou grande interesse profissional na área: 88% manifestaram desejo de atuar em logística humanitária. Esse interesse se concentra nas fases mais críticas da resposta: 86% apontaram a fase de resposta como a mais importante, seguida da prevenção (74%) e recuperação (58%).

 

Estrutura Humanitária: Nacional e Internacional

No Brasil, embora existam avanços na Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (Lei 12.608/2012), as respostas mostram desigualdade regional. O Sudeste e Sul concentram a maior parte do conhecimento técnico. Já o Norte e Centro-Oeste têm baixa representatividade. Internacionalmente, Europa e América do Norte apresentam maior maturidade institucional, enquanto regiões africanas e partes do Oriente Médio enfrentam desafios estruturais crônicos, muitas vezes agravados por conflitos prolongados.

 

Qualificações Técnicas por Área

Quando questionados sobre a qualificação necessária para atuação em setores técnicos da resposta humanitária — Abrigo Temporário, Gerenciamento de Doações/Centro de Doações, Campo de Refugiados, Proteção e Defesa Civil (Municipal e Estadual) e Mobilidade e Suporte Operacional — os participantes apontaram demandas específicas que reforçam a centralidade da logística humanitária como eixo formativo.

A análise dos dados mostra que a formação em cursos específicos de logística humanitária foi a mais destacada em todas as áreas, sendo indicada por 49,9% dos respondentes para Abrigos Temporários, 48,4% para Centros de Doações, 39,3% para Campos de Refugiados, 47,5% para Proteção e Defesa Civil Municipal, 40,2% para Proteção e Defesa Civil Estadual e 40,8% para Mobilidade e Suporte.

 

  • A graduação acadêmica em logística humanitária foi reconhecida como importante, sobretudo em Centros de Doações (19,6%) e Campos de Refugiados (20,2%), áreas que exigem maior domínio de processos logísticos e gestão humanitária.

  • A pós-graduação e o mestrado foram valorizados em setores que demandam maior articulação institucional e visão estratégica, como o Órgão de Proteção e Defesa Civil Estadual (12,3% pós-graduados e 14,1% mestres) e Campos de Refugiados (12,3% pós-graduados e 11,1% mestres).

  • O número de participantes que indicaram a possibilidade de atuação sem conhecimento técnico formal é expressivo — variando de 13,2% a 24,6% conforme o setor. Esse dado revela não apenas a valorização do voluntariado e da experiência prática, mas também a fragilidade na definição de competências específicas. A ausência de clareza sobre as exigências do segmento tende a minimizar a relevância do conhecimento técnico, o que pode resultar em padrões de desempenho inferiores e na aceitação de respostas menos eficientes. Essa percepção se conecta a outros achados da pesquisa, reforçando a necessidade de padronizar qualificações mínimas e ampliar a conscientização sobre a complexidade da logística humanitária.

 

Dessa forma, a pesquisa revela que, para além dos conhecimentos específicos descritos (como assistência social em abrigos, gestão de estoques em doações, geopolítica em campos de refugiados, articulação institucional em proteção e defesa civil e logística de transporte em mobilidade e suporte), existe uma forte expectativa de formação estruturada em logística humanitária como base comum para todas as áreas de atuação.

 

Legislações e Marcos Técnicos

Os participantes destacaram a necessidade de conhecimento das principais normativas, como:

  • Lei nº 12.608/2012 (PNPDEC - Brasil)

  • Diretrizes da ONU e Projeto Esfera

  • Marco de Sendai e o Manual da Cruz Vermelha Internacional

Para 92% dos respondentes, o profissional de logística humanitária deve ser um especialista com formação específica. Já 78% afirmaram que não há necessidade de vínculo militar, e sim técnico.

8. REFLEXÕES SOBRE OS RESULTADOS

Apesar do avanço da área, os dados revelam um descompasso entre o conhecimento que os participantes afirmam possuir e a efetiva aplicação prática. A atuação em logística humanitária demanda não apenas domínio técnico, mas também experiência de campo e sensibilidade às dimensões humanas e sociais das crises.

Discussão Crítica

A análise dos dados da pesquisa evidencia um panorama multifacetado da logística humanitária, tanto no Brasil quanto internacionalmente, caracterizado por avanços pontuais, mas ainda marcado por lacunas estruturais e formativas significativas. A participação de profissionais nacionais e estrangeiros demonstra a crescente mobilização em torno do tema, ao mesmo tempo em que ressalta a necessidade urgente de consolidação profissional, normatização e padronização das práticas.

Embora a maioria dos participantes (aproximadamente 66%) afirme conhecer o conceito de logística humanitária, os dados indicam que, em muitos casos, esse conhecimento se limita a vivências práticas ou a formação genérica. Ao cruzar essa autopercepção com o tipo de atuação, grau de escolaridade e inserção institucional, observa-se que o conhecimento técnico específico é minoritário. Apenas uma parcela reduzida dos participantes possui experiência formal ou atuação estruturada em logística humanitária. Aproximadamente 25% já estiveram envolvidos em processos de logística humanitária, enquanto menos de 20% atuam em instituições que possuem setores dedicados à área. Além disso, a maioria dos setores institucionais carece de profissionais com formação específica: apenas cerca de 15% dos respondentes indicaram trabalhar em equipes com cursos especializados em logística humanitária, e uma parcela ainda menor, aproximadamente 8%, possui graduação na área, evidenciando lacunas significativas na capacitação formal.

Outro ponto relevante refere-se às ocorrências em que os participantes atuaram. A maioria esteve envolvida em inundações, deslizamentos, pandemias, incêndios e conflitos armados. Entretanto, poucos relataram participação em ações mais estruturadas, como abrigamentos planejados, estocagem estratégica ou organização de rotas de evacuação, essenciais para uma logística eficiente. No caso de conflitos e crises migratórias, a criação de campos de refugiados foi pouco mencionada, o que reflete também o fato de que a maioria dos países representados na pesquisa não possui esse tipo de estrutura, dada a especificidade e complexidade desse tipo de operação. Esses achados indicam que a atuação frequentemente se concentra na resposta emergencial imediata, em vez de em estruturas preventivas e organizadas, capazes de reduzir riscos e otimizar a eficiência das operações humanitárias.

Além disso, quando questionados sobre a existência de setores específicos em suas instituições, cerca de 53% disseram que sim, mas os dados qualitativos revelam que esses setores nem sempre são ocupados por profissionais capacitados. Esse achado reforça a fragilidade do sistema e sua vulnerabilidade frente a eventos complexos e de grande escala.

Os relatos também revelam certa confusão entre a logística humanitária e as funções da proteção e defesa civil, além de percepções variadas sobre a natureza militar ou civil do profissional ideal para atuar nesse campo. A grande maioria dos participantes (92%) acredita que o profissional não precisa ser militar, e quando questionados sobre a preferência, 63% indicam que é indiferente se o profissional é militar ou civil, 22% acreditam que deve ser civil, 4% que deve ser militar, e 9% apontam outras possibilidades. Esses dados reforçam que, independentemente da origem, a atuação deve se basear em competências técnicas específicas e conhecimento especializado em logística humanitária.

A mídia frequentemente destacou episódios de má gestão, desvios de recursos e falhas operacionais em missões humanitárias — juntamente com os relatos dos participantes, apontam para a urgência de marcos legais mais claros, protocolos internacionais mais rígidos e formação obrigatória para os atores envolvidos

Em suma, a pesquisa mostra que, apesar da crescente visibilidade da logística humanitária, ela ainda é um campo em construção, com desafios significativos em termos de formação, profissionalização, coordenação interinstitucional e presença normativa. Para que a atuação em desastres e conflitos seja eficaz, é fundamental investir em capacitação, normatização e construção de redes colaborativas entre governos, ONGs, setor privado e sociedade civil.

9. CONTEXTO E LEGISLAÇÃO

A logística humanitária, enquanto componente estratégico da resposta a desastres, encontra respaldo em legislações nacionais e diretrizes internacionais. No Brasil, a Lei nº 12.608/2012, que institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC), define competências das esferas federal, estadual e municipal na prevenção, preparação, resposta e recuperação frente a desastres, incluindo a organização de sistemas de informação, centros de gestão de donativos e integração entre órgãos públicos e privados – um reconhecimento implícito da importância logística nos processos emergenciais. No entanto, a pesquisa evidencia lacunas significativas na execução das ações humanitárias, como preparo técnico insuficiente, protocolos pouco claros e dificuldades de coordenação entre União, estados e municípios. Essas deficiências, refletidas no cotidiano das operações, parecem repercutir também na formulação de políticas públicas e legislações, como o PL 698/2022, que busca centralizar e organizar a distribuição de doações, prevendo centros de recebimento, triagem, estocagem e mecanismos de gestão de informações integradas. Embora represente um avanço legislativo, a proposta ainda pode enfrentar obstáculos práticos, como sobrecarga de recursos, falhas na triagem e fiscalização e desafios de coordenação em situações complexas, reforçando que a efetividade depende de protocolos claros, formação técnica especializada e mecanismos rigorosos de supervisão, de modo a garantir que os recursos doados atendam de fato às demandas locais e às necessidades das populações afetadas.

No plano internacional, marcos como o Marco de Sendai para Redução de Riscos de Desastres (2015–2030), promovido pela ONU, reforçam a relevância de estruturas logísticas eficientes e coordenadas em todas as fases do ciclo de desastres. O documento recomenda o fortalecimento de capacidades institucionais para o gerenciamento de recursos, suprimentos e rotas em situações críticas, promovendo resiliência e resposta eficaz.

Casos emblemáticos, como o rompimento da barragem em Brumadinho (2019) e outros desastres no Brasil, evidenciaram falhas na coordenação logística, incluindo atrasos na chegada de suprimentos, sobreposição de esforços e distribuição inadequada de donativos. Relatos extraídos da mídia apontam problemas como desvios de doações, armazenamento inadequado de mantimentos e atrasos na entrega de suprimentos emergenciais. Esses episódios evidenciam lacunas estruturais na resposta humanitária, reforçando a necessidade de protocolos claros, formação técnica obrigatória e marcos legais mais rigorosos, como o Projeto de Lei 4515/08, que propõe aumento da pena para quem furta donativos destinados a vítimas de calamidades.

Os dados desta pesquisa confirmam esse cenário: apenas 52% das instituições declararam possuir um setor específico voltado à logística humanitária, e entre essas, 35% são compostas por profissionais sem qualificação técnica específica. Além disso, embora 285 participantes tenham afirmado conhecer o conceito de logística humanitária, análises qualitativas revelam que uma parcela significativa possui conhecimento superficial ou meramente intuitivo.

A discrepância entre normas legais e a realidade operacional ressalta a necessidade urgente de profissionalização, formação técnica continuada e consolidação de políticas públicas que garantam a eficácia da logística em cenários de crise. A legislação existe, mas sua aplicação depende da capacidade de articulação entre setores, investimentos em capacitação e compromisso político com a proteção integral das populações vulneráveis.

10. CONCLUSÃO

Com base nas análises anteriores, as conclusões a seguir sustentam recomendações estratégicas para fortalecimento da área.

A análise dos 341 participantes de 55 países revela que a logística humanitária, embora amplamente mencionada, ainda é pouco compreendida e raramente institucionalizada de forma técnica e eficiente. A pesquisa demonstrou que muitos dos que dizem conhecer o tema possuem apenas uma noção prática ou generalista, sem formação específica, e em muitos casos, atuam em instituições onde sequer existe um setor estruturado para essa finalidade.

A predominância de participantes do Brasil, especialmente de estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, está associada a ocorrências históricas de grande impacto, como os desastres de Mariana e Brumadinho, nos quais o autor atuou diretamente. Essa experiência contribuiu para a disseminação local do conhecimento em logística humanitária. Observa-se que algumas universidades têm buscado incluir a temática em seus programas de estudo, embora de forma ainda limitada, refletindo uma divisão entre os mundos acadêmico e operacional. Na prática, a efetividade da logística humanitária depende da integração entre esses universos — profissionais de campo, pesquisadores, legisladores, órgãos públicos e privados, militares e civis, ONGs e sociedade civil — construindo conjuntamente políticas, protocolos e estratégias de atuação. Esse elo entre teoria e prática é essencial para garantir que as ações humanitárias sejam eficazes, coordenadas e sustentáveis

Internacionalmente, a forte participação da Síria e de países afetados por conflitos armados ou desastres socioambientais demonstra o interesse de profissionais que vivem ou atuam em contextos de emergência, reforçando a importância de se abordar o tema de forma globalizada. Entretanto, a análise crítica dos dados aponta que a ausência de formação específica e a falta de padronização das estruturas logísticas impactam negativamente a eficiência da resposta humanitária, causando desperdícios, violações de direitos e riscos à dignidade das populações afetadas.

As fragilidades identificadas na formação, nas práticas e na composição dos setores de logística humanitária revelam a necessidade de políticas públicas, regulamentações e diretrizes claras que fortaleçam o papel técnico desse campo. O investimento em capacitação, protocolos interinstitucionais e mecanismos de responsabilização são passos essenciais para que a logística humanitária deixe de ser improvisada e passe a ser estratégica.

A presente pesquisa, portanto, não apenas revela dados, mas denuncia um sistema ainda precário e propõe caminhos para sua profissionalização. A logística humanitária precisa ser reconhecida como área de atuação independente e especializada, com estrutura, orçamento e recursos humanos capacitados para atuar desde a prevenção até a recuperação de desastres e conflitos.

Diante dos resultados e análises apresentados, torna-se evidente a necessidade de medidas estruturantes que promovam a consolidação da logística humanitária como política pública permanente, fundamentada em bases técnicas, éticas e institucionais.

As recomendações a seguir traduzem os principais aprendizados da pesquisa e propõem caminhos práticos para fortalecer a formação profissional, a padronização de procedimentos e a integração entre os diversos atores da resposta humanitária.

11. RECOMENDAÇÕES

A consolidação da logística humanitária como uma política pública permanente exige o reconhecimento de sua centralidade nas respostas a emergências, desastres socioambientais e crises sociotecnológicos. Com base nas evidências empíricas desta pesquisa — que envolveu 341 participantes de 55 países —, combinadas com legislações vigentes, marcos internacionais e experiências práticas recentes, propõem-se as seguintes diretrizes estratégicas:

 

a. Institucionalização de setores específicos de logística humanitária

A criação e o fortalecimento de setores específicos de logística humanitária são medidas fundamentais para garantir respostas rápidas, eficazes e coordenadas frente a emergências. A Lei nº 12.608/2012, que institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC), já determina a obrigatoriedade da existência de estrutura técnica e organizacional mínima nos municípios, proporcional à sua população e ao grau de risco, incluindo a formação de Núcleos Municipais de Defesa Civil (NUDEC) e a elaboração de planos de contingência.

Recomenda-se, portanto, o aprimoramento da aplicação da Lei nº 12.608/2012, com mecanismos efetivos de fiscalização, auditoria técnica e indução federativa, que incentivem os municípios — especialmente os de médio e grande porte — a cumprirem integralmente os requisitos exigidos. Além disso, propõe-se que a legislação seja complementada com a obrigatoriedade da presença de profissionais qualificados em logística humanitária nos órgãos públicos, de modo a garantir a profissionalização, padronização e eficiência do setor.

É essencial que haja uma definição institucional clara quanto ao órgão responsável pela logística humanitária no âmbito municipal. Apesar de em algumas localidades a responsabilidade pela gestão de donativos ou logística de emergências ser atribuída à assistência social, essa designação pode comprometer a ação e os resultados, uma vez que a logística humanitária é uma atribuição estratégica que deve estar sob a coordenação do Órgão de Proteção e Defesa Civil. A assistência social deve atuar em articulação com a Proteção e Defesa Civil, contribuindo com mapeamentos sociais, identificação de vulnerabilidades e suporte humanitário às famílias afetadas. No entanto, a condução logística das operações — envolvendo planejamento, recebimento, armazenamento, distribuição e rastreabilidade dos recursos — deve ser liderada por um setor técnico especializado, com atribuições formalmente reconhecidas no escopo da proteção e defesa civil.

Esses núcleos devem contar com protocolos operacionais definidos, integração com os sistemas de saúde, segurança, transporte e assistência social, e capacidade plena de atuação nas fases de prevenção, resposta e recuperação de desastres.

 

b. Formação técnica e acadêmica especializada

A maior parte dos profissionais (77,4%) afirmou ter adquirido conhecimento por meio da vivência prática, sem formação formal na área. Apenas 8,2% possuem graduação em logística humanitária, enquanto 14,4% cursaram formações livres. Os resultados indicam a necessidade de inclusão da disciplina em cursos de graduação (engenharia, serviço social, administração, saúde, gestão pública), ampliação de pós-graduações e promoção de certificações nacionais e internacionais (como Sphere, IFRC, Sendai Framework), além de capacitações regulares para consolidar a formação técnica dos profissionais.

 

c. Profissionalização e reconhecimento legal

Assim como médicos e bombeiros possuem reconhecimento oficial, o profissional de logística humanitária precisa ser regulamentado com atribuições definidas, certificações técnicas e reconhecimento em conselhos ou órgãos profissionais. A Lei nº 12.608/2012 já aponta a importância da gestão de donativos, mas é necessário evoluir para o reconhecimento formal da profissão e sua incorporação nas políticas de proteção e defesa civil.

 

d. Estruturação de centros de gestão de donativos e estoques estratégicos

Recomenda-se a implantação de centros permanentes de recebimento, triagem, armazenamento e distribuição de donativos com atuação preventiva e capacidade de mobilização rápida. Esses centros devem estar articulados com sistemas municipais, estaduais e internacionais, possuir rotas logísticas mapeadas e integração com bancos de dados e cadastros de vulneráveis.

 

e. Legislação e protocolos padronizados

É imprescindível avançar em marcos legais complementares à Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (Lei nº 12.608/2012), estabelecendo normas claras e universais sobre planejamento, operação, triagem, transporte, armazenamento e avaliação logística em situações de emergência. A legislação já determina, em seu Art. 8º, inciso XII, que compete aos municípios promover a coleta, distribuição e controle de suprimentos em desastres. No entanto, a aplicação prática desse dispositivo tem sido frágil, e, em muitos casos, a atividade é indevidamente delegada exclusivamente a setores de assistência social, sem o preparo logístico e técnico necessário.

A existência de protocolos operacionais bem definidos reduz riscos de desperdícios, desvios, sobreposição de esforços e falhas operacionais, garantindo efetividade, equidade e rastreabilidade no atendimento às populações afetadas. Para isso, é fundamental que o setor responsável pela logística humanitária seja vinculado à estrutura do Órgão de Proteção e Defesa Civil municipal, com atuação intersetorial articulada com áreas como assistência social, saúde, transporte e segurança.

Nesse contexto, torna-se estratégica a revisão e o aprimoramento do Projeto de Lei nº 698/2022, que pretende alterar a Lei nº 12.340/2010 para incluir dispositivos sobre o apoio federal na organização de centros de recebimento e envio de suprimentos. Embora a proposta reforce a importância da estruturação logística, ela precisa ser compatibilizada com a responsabilidade primária dos municípios — como já previsto na Lei nº 12.608/2012 — e incluir salvaguardas como:

 

  • repasse de recursos via fundos municipais de proteção e defesa civil;

  • exigência de prestação de contas e fiscalização federal sobre as estruturas criadas;

  • inclusão de profissionais qualificados na gestão dos centros logísticos;

  • padronização da estratégia de triagem, rotas de distribuição e controle de estoque.

 

Além disso, recomenda-se a atualização do Plano de Contingência Municipal, incluindo obrigatoriamente um protocolo de gestão logística humanitária, com o mapeamento dos centros de recebimento, definição de rotas, critérios de distribuição e previsões para estoque estratégico de suprimentos. A transparência e a eficiência logística devem ser compreendidas como parte essencial da garantia dos direitos das populações afetadas.

 

f. Cooperação internacional e intercâmbio de boas práticas

A pesquisa demonstrou diferentes realidades entre os países: regiões como Síria, Jordânia e Turquia apresentam alto envolvimento prático, porém frágil estrutura institucional; enquanto Alemanha, Canadá e Portugal oferecem modelos técnicos estruturados. É necessário estimular redes de cooperação, missões conjuntas, fóruns multilaterais e programas de mobilidade para intercâmbio de estratégias bem-sucedidas.

 

g. Financiamento e sustentabilidade operacional

A logística humanitária, frequentemente dependente de doações e parcerias emergenciais, precisa de mecanismos permanentes de financiamento. Recomenda-se a criação de linhas de fomento específicas, previsão orçamentária em planos plurianuais e incentivos fiscais para empresas que investem em infraestrutura, formação e inovação humanitária.

 

h. Monitoramento, avaliação e transparência

Faltam indicadores e dados sistematizados sobre falhas logísticas, desvios, entregas ineficientes ou más práticas. Sugere-se o desenvolvimento de plataformas de rastreabilidade, auditorias públicas e observatórios técnicos com participação de universidades, órgãos de controle e sociedade civil. A logística humanitária deve ser compreendida como uma política de Estado e um direito das populações vulneráveis.

 

Ao implementar essas recomendações, o Brasil poderá não apenas responder com mais eficiência a emergências e desastres, mas também consolidar-se como referência ética, técnica e inovadora na gestão humanitária global. Isso inclui alinhar-se aos princípios fundamentais da Carta Humanitária — como a centralidade da dignidade humana, a imparcialidade, a participação das comunidades afetadas e a prestação de contas — e adotar os padrões mínimos de resposta propostos pelo Projeto Esfera, que envolvem desde a logística de suprimentos até o acesso a água, abrigo, nutrição e saúde. A construção de um sistema sólido de logística humanitária requer não apenas estruturas e leis, mas também compromisso com a equidade, transparência, coordenação interinstitucional e foco contínuo na redução do sofrimento humano. Com isso, o Brasil poderá contribuir de forma relevante para salvar vidas com dignidade, agilidade e justiça — tornando a resposta humanitária mais eficaz, previsível e respeitosa às realidades locais e globais.

12. REFERÊNCIAS

Legislações e Marcos Técnicos

BRASIL. Lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012. Institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil – PNPDEC; dispõe sobre o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil – SINPDEC; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 abr. 2012.

BRASIL. Projeto de Lei nº 698/2022. Dispõe sobre a criação de centros de recebimento, triagem e distribuição de doações em situações de emergência. Brasília, DF, 2022.

BRASIL. Projeto de Lei nº 4515/2008. Altera o Código Penal para aumentar as penas em casos de furto, apropriação ou desvio de donativos destinados a vítimas de calamidades. Brasília, DF, 2008.

ONU. Marco de Sendai para a Redução do Risco de Desastres 2015–2030. Genebra: Organização das Nações Unidas, 2015.

SPHERE PROJECT. Humanitarian Charter and Minimum Standards in Humanitarian Response. 4th ed. Geneva: The Sphere Association, 2018.

INTERNATIONAL FEDERATION OF RED CROSS AND RED CRESCENT SOCIETIES. Code of Conduct for the International Red Cross and Red Crescent Movement and NGOs in Disaster Relief. Geneva: IFRC, 1994.

 

Bibliografia e Fontes Complementares

CUNHA, Douglas Sant’ Anna da. Logística Humanitária: Metodologia de Centros de Gestão de Donativos. Ouro Preto: Editora UFOP, 2019.

MARTINS, Gilberto de Andrade; THEÓPHILO, Carlos Renato. Metodologia da Investigação Científica para Ciências Sociais Aplicadas. São Paulo: Atlas, 2021.

TOMASINI, Rolando; VAN WASSENHOVE, Luk N. Humanitarian Logistics. New York: Palgrave Macmillan, 2009.

VAN WASSENHOVE, Luk N. Humanitarian Aid Logistics: Supply Chain Management in High Gear. Journal of the Operational Research Society, v. 57, p. 475–489, 2006.

ONU. Relatório Global de Avaliação sobre Redução de Riscos de Desastres (GAR 2023). Genebra: UNDRR, 2023.

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